Os meus Sancho Pança e D. Quixote
Desde que me recordo, sempre existiram na minha personalidade grandes contendas. Sentia como se a cada dia que passasse e a cada decisão que tomasse estaria a definir o meu futuro eu. Talvez por isso, sempre me tenha conhecido como um indeciso de primeira. De cada vez que era necessária uma decisão, era um Deus nos acuda. Ainda hoje assim é. A minha avó dizia-me muitas vezes que cada um se haveria de deitar na cama que fizesse e, por isso, eu queria fazer tudo bem. Dentro da minha educação cristã, eu pensava, e penso, qual seria a melhor decisão a tomar, qual a escolha mais justa a ser feita. Eu queria ser uma boa pessoa, queria ser coerente nas minhas ações e, por isso, tinha sempre de ponderar muito bem antes de agir. Ora, um dos grandes conflitos que, desde sempre, existiu, dentro de mim, estabelecia-se entre o materialismo e consumismo a que sempre me senti atraído e o idealismo ou espiritualismo que deveria guiar a minha conduta. E que eu, como homem íntegro e de bons princípios deveria seguir, se quisesse deixar a minha cama bem feita. Com quinze anos, graças a Almeida Garrett e às suas Viagens na minha terra pude nomear esse meu conflito, isto é, atribuir nomes aos dois lados da batalha que dentro de mim lutavam. Ao longo da narrativa, Garrett faz várias referências às duas principais personagens da obra D. Quixote de la Mancha de Miguel Cervantes: D. Quixote e o seu servente Sancho Pança. Pois bem, se D. Quixote representava o idealismo, o espiritualismo, o completo desprendimento dos valores terrenos, Sancho representava o oposto. Era este que, a meio dos desvarios daquele, o puxava para a terra, o obrigava a deixar a terra dos sonhos, onde combatia moinhos em forma de monstros e procurava a sua amada Dulcineia. Era Sancho, o amante dos vícios mundanos que contra-balançava o idealismo exagerado de D.Quixote.
Daí em diante, já sabia que nome lhes havia de dar. Sempre que sentia uma vontade súbdita de gastar mais do que queria em computadores, consolas, jogos e roupas, sabia que o Sancho estava a ganhar. Mas eu não podia deixar, porque os meus princípios, o D. Quixote, tinham uma palavra a dizer. E então tentava encontrar um equilíbrio, ou, melhor ainda, resolver de vez a disputa.
Ora, por muito que me custe desapontar os meus fiéis leitores, com trinta e um anos, continuo igual. Continuo a desejar o último modelo do iPhone, a gastar mais dinheiro do que o necessário em camisolas, sapatos e casacos e de cada vez que o faço, não me arrependo, mas penso para comigo e digo "Tenho de me controlar, tenho de me ficar pelo estritamente necessário". Digo muitas vezes, mas não tem resultado. Por isso ainda me considero um pequeno consumista que dá mais valor às aparências do que devia. O Sancho vai à frente, mas D. Quixote não dorme e lembra-me do que é realmente importante. E assim, apesar de me dar uma satisfação enorme comprar prendas para mim próprio, para a minha casa e para a minha esposa, também tenho consciência de que o que é realmente importante são coisas que não se podem comprar e são aquelas que nos trazem a verdadeira felicidade.