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Trinta por uma linha

Trinta por uma linha

O Estilo

10.01.17 | António Mota

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“Não aguentamos a desordem estuporada da vida”

Um dos meus grandes defeitos que, dependendo do ponto de vista, pode também simultaneamente ser considerado uma das minhas grandes virtudes, é o de carecer, desde que me conheço, de atribuir um sentido e uma significância a tudo o que faço, em todas as dimensões da minha vida. Dita desta forma, a ideia que acabo de referir apresenta-se como algo vago e pouco expressivo, mas se a desenvolver, penso que esta não é muito difícil de perceber. Desde sempre senti uma necessidade absurda de atribuir ordem e linearidade às coisas. Bem sei que um espírito afecto às letras e às contendas do espírito não deve ser devoto às ideias ordenadas, fixas, lineares e harmoniosas. Tem antes de se sentir preparado para pôr constantemente tudo em causa e re-questionar cada partícula da sua doutrina ou do seu credo, como lhe quisermos chamar. Apesar de estar consciente desse facto, que é um verdadeiro axioma, na vida de qualquer ser pensante, em geral, e de qualquer consciência dedicada às filosofias em particular, nunca me senti capaz de actuar na desordem e no caos. Sempre necessitei de ter as ideias bem organizadas, como que colocadas em diferentes compartimentos, relacionadas com as várias extensões da minha vida e de acordo com os meus diversos objectivos e propósitos. Para mim, tudo que acontecesse deveria possuir uma causa e um efeito. Assim, passei grande parte da minha vida tentando e atribuindo causas e efeitos, percebendo as suas inter e intrarelações.
Pois bem, hoje que conheço um pouco mais do mundo das pessoas, das suas vivências e das suas semânticas, ou melhor, da falta delas, percebo clara e inequivocamente que esta é uma das grandes razões para os meus sempre presentes sentimentos de desespero e insatisfação pessoais. Quanto mais apegados formos à harmonia, quanto mais aficionados nos declararmos à linearidade da vida, mais dificuldades vamos ter para nos mentalizarmos da sua “desordem estuporada”. Pelos infinitos esforços que têm vindo a ser feitos ao longo de todos os séculos da nossa história, por vezes, por meio de muitas estórias, facilmente percebemos que não há vida que perceba a vida, não há ordem que lhe resista, nem espírito que lhe consiga dar razão. Pelo que já referi, poucos devem ser os seres pensantes que ainda não tenham chegado a esta conclusão. Não é descoberta nenhuma. No entanto, e talvez venha daí a minha admiração por este tema que, como se pode ver, é há bastante tempo alvo das minhas mais acesas reflexões, nunca desistimos nem jamais iremos abandonar esta luta de atribuir sentido ao que já por de mais se provou não possuir nenhum. Quase que almejamos significar aquilo que por definição é insignificante.
Tal como acontece com todas as outras reflexões que trago sempre comigo, com as quais passo imenso do meu imenso tempo de solidão, e que precisam de uma razão que motive a sua expressão, o que acirrou toda esta corrente de pensamentos, foi a leitura de uma prosa que, segundo o seu autor é poesia, e que me fez assumir e definitivamente aceitar estas ideias que corriam em mim, mas que devido a alguma ainda inocente esperança de descrédito não haviam sido exteriorizadas. Falo de um pequeno texto de Herberto Helder, Estilo. Aquando da sua leitura, experienciei um sem número de ideias partilhadas e consciencializei outras tantas que me permitiram uma melhor percepção e um mais claro entendimento das que já possuía. Primeiramente, é reconfortante saber que questões que nos são tão íntimas e com nuances tão pessoais foram também alvo de reflexão de mentes tão ilustres. Depois, há que perceber inequivocamente duas realidades que para mim são dois verdadeiros aforismos. Por um lado, existe, de facto, essa noção que a nossa vida é terrivelmente desordenada e com desígnios incompreensíveis, mas que, e por outro lado, nós nunca vamos deixar de lhe tentar dar sentido, nem desistir de procurar dar ordem, harmonia e linearidade às nossas acções. Agora resta saber como o fazemos. É aí que, segundo Herberto Helder, surge o Estilo. Podemos perguntar de que Estilo estamos a falar. Será o estilo de escrever, o estilo de falar, o estilo de rir, o estilo de falar. Eu mesmo fiz essa pergunta a durante a leitura. Agora que consigo pensar de forma mais independentemente, depois de ter assimilado as ideias gerais do texto, admito que o estilo se trata de todas elas em geral e de nenhuma delas em particular. No fundo, podemos resumir todas essas ideias numa que as abarca. Assumamos, então, que estamos aqui a falar do estilo de viver. E o nosso estilo de viver, ou estilo de vida, se preferirmos um tema bem mais comum e mais fácil de perceber, é a forma como falamos, rimos, comemos, escrevemos, vestimos, a forma que encontramos para sermos coerentes, perceba-se, coerentemente fortes em face das incoerências da vida. No que diz respeito a este tema em particular, sei bem do que estou a falar, uma vez que, como já tive oportunidade de referir, sempre fui dependente das coerências e mesmo aceitando que é bem mais importante ser consequente do que ser coerente, nunca conseguirei viver de forma incoerente, mesmo entendendo que isso me possa tornar num inconsequente. Pois bem, como o próprio Herberto o coloca, “O estilo é o modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação.” Ele, por exemplo, arranjou o seu estilo “…estudando matemática e ouvindo um pouco de música – João Sebastião Bach.”
Há, por exemplo, quem recorra à arte para definir o seu estilo. E, se pararmos um pouco para reflectir sobre a sua definição, percebemos que faz todo o sentido considerar a arte uma tentativa de transformar o mundo que é de todos, no nosso mundo. Tomemos o exemplo de um poeta. Ao escrever poesia, ele não faz mais que organizar os seus sentimentos, percepções e entendimentos versos, que se agrupam em estrofes e que podem ou não ter que obedecer a um sem número de regras a nível vocabular, da rima e da métrica. Desta forma, ele está a forçar a sua intuição e a desordem dos seus sentidos a procurarem uma harmonia de forma a obter a expressão. Neste processo, e com ele, o poeta define o seu estilo e arranja um utensílio que o ajuda a viver.
Por tudo o que foi dito até aqui, esta parece um enigma bastante fácil de resolver. Arranja-se um estilo e vive-se. A meu ver, temos, no entanto, que estar conscientes da natureza, do propósito e principalmente do fatalismo deste elemento a que chamamos estilo. De forma muito simplista, a nossa equação resume-se a isto: Viver é demasiado, não conseguimos dar lógica aos nossos actos, nem conseguimos sequer perceber as suas consequências. Então arranjamos um estilo que vai ser a ferramenta da nossa salvação. Contudo, quando aceitamos essa realidade inultrapassável e partimos para a descoberta do nosso estilo, assumimos de forma irremediável que a nossa vida é insignificante por natureza e que com o estilo estaremos apenas a contornar o problema e não a resolvê-lo. Assim, nunca viveremos, apenas sobreviveremos, pois o estilo é o nosso tudo, pois dá-nos alguma ordem, mas é também a confirmação evidente do nada que somos. Só partimos para a resolução parcial desta equação, quando estivermos plenamente conscientes da sua impossibilidade. Daí podermos dizer que o estilo é a nossa fuga e o nosso cárcere, a salvação e o desespero da nossa limitação. Daí a nossa loucura. “Mas, escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa… Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande segredo da nossa humanidade?”