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Trinta por uma linha

Trinta por uma linha

Leiam, malandros, leiam!

20.01.17 | António Mota

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Enquanto professor de português, tenho algumas dificuldades em explicar aos meus alunos a verdadeira importância de eles adquirirem hábitos de leitura desde tenra idade. Este é aquele tipo de conversa que eles já ouviram tantas vezes, pela boca de tanta gente que já não lhes diz nada. É quase como que um medicamento que já foi tomado tantas vezes que já não faz efeito, uma vez que o vírus já desenvolveu defesas.

Com a plena consciência de que o conselho não vai ser acatado facilmente, tenho, nos últimos tempos, refletido sobre uma nova forma de lhes apresentar o problema. Assim, recentemente digo-lhes que o importante é estarmos em contacto com a língua, quer sob a sua forma oral, quer sob a sua forma escrita. Peço-lhes que olhem para a sua capacidade de ler e escrever em português como se de um desporto se tratasse. Imaginem que quero ser capaz de correr a maratona, digo-lhes eu. Tenho certamente que começar a treinar com muita antecedência e com muita frequência. Se ao fim do primeiro mês correr cinco quilómetros, ao fim do segundo já conseguirei correr dez. Da mesma forma, quanto mais em contacto estiverem com a língua, neste caso, quanto mais eles lerem, melhores falantes, leitores e escritores se tornarão. Na verdade, a mensagem que quero passar é que este é um treino como outro qualquer. 

Por outro lado, também lhes digo que, apesar de haver um conjunto de obras que terão de ler, são eles próprios que devem procurar e decidir quais são as suas leituras, quais são os livros, revistas e jornais do seu interesse. Porque o que importa é ler.

 

Passava-se exatamente o mesmo caso comigo, quando tinha catorze anos. Não ia muito à bola com a leitura, porque, como eles, tinha jogos e brincadeiras que me interessavam muito mais. No entanto, um tio meu ofereceu-me um pequeno livro que cativou o meu interesse apenas com o seu título. O livro era "A crónica dos bons malandros" de Mário Zambujal e contava, de uma forma muito original, leve e divertida, a história de uma quadrilha que estava a preparar o assalto do século. O primeiro capítulo apresentava-nos a situação inicial e, daí em diante, cada capítulo tinha, como título, o nome de uma personagem, contando a história da sua vida até chegar ao ponto em que se encontravam no início do livro. A cada um dos larápios era atribuída uma alcunha que, regra geral, escondia por detrás uma história muito engraçada. Comecei a ler e só parei quando o livro acabou. Foi uma tarde bem passada e o mais importante de tudo foi a impressão que me deixou, a ideia de que os livros também escondem histórias interessantes, originais e engraçadas e que, vá-se lá imaginar, também me conseguia divertir a ler. 

 

Hoje, acredito que foi um ponto de viragem e talvez até fundamental para as escolhas profissionais que, mais tarde, haveria de tomar. É que, às vezes, é isto que falta, um clique que faça despertar neles o prazer da leitura. Por isso, não me canso de lhes dizer: leiam, malandros, leiam!

José, por Miguel Araújo

19.01.17 | António Mota

 

 

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Um menino de quatro anos que decide descobrir o mundo sem sair do quintal de sua casa. As batalhas que trava e os mistérios que desvenda. Os medos e as vitórias. O brinquedo que o salva e o lacrau que o ataca. E quando tudo parece perdido, o aconchego da voz da sua mãe.

 

Há compositores assim, com uma capacidade extraordinária para nos levar para dentro da sua arte, de nos fazer sonhar com ela. Ouçam a música, sintam a letra e vejam como tudo, com a maior simplicidade do mundo, transpira significado e coerência. Tal como acontece quando nos damos ao luxo de ser crianças, tudo se encaixa, tudo faz sentido.

 

 

 

A vara de negrilho que fez a Península Ibérica navegar

18.01.17 | António Mota

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Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se. (…) Se a Joana Carda alguém vier a perguntar que ideia fora aquela sua de riscar o chão com um pau, gesto antes de adolescente lunática do que de mulher cabal, se não pensara nas consequências de um acto que parecia não ter sentido, e esses, recordai-vos, são os que maior perigo comportam, talvez ela responda, Não sei o que me aconteceu, o pau estava no chão, agarrei-o e fiz o risco, Nem lhe passou pela ideia que poderia ser uma varinha de condão, Para varinha de condão pareceu-me grande, e as varinhas de condão sempre eu ouvi dizer que são feitas de ouro e cristal, com um banho de luz e uma estrela na ponta, Sabia que a vara era de negrilho, Eu de árvores conheço pouco, disseram-me depois que negrilho é o mesmo que ulmeiro, sendo ulmeiro o mesmo que olmo, nenhum deles com poderes sobrenaturais, mesmo variando os nomes, mas, para o caso, estou que um pau de fósforo teria causado o mesmo efeito, Por que diz isso, O que tem de ser, tem de ser, e tem muita força, não se pode resistir -lhe, mil vezes o ouvi à gente mais velha, Acredita na fatalidade, Acredito no que tem de ser.

 

Assim começa um grande livro, que, na minha opinião, nos diz muito sobre todos os livros. Não escondo a minha admiração por Saramago, pela sua escrita, pelo manancial e pluralidade de temas apresentados e pela genialidade e originalidade com que  ele os aborda. Sempre me senti atraído por autores e obras que elevam a criatividade humana e A Jangada de Pedra não foge à regra. Poderia fazer quase uma dissertação sobre esta obra, visto que já a estudei intensivamente. No entanto, pensei trazer apenas o início deste livro, uma vez que, devido ao seu valor, é suficiente para que falemos sobre um tema que me diz muito e que penso ter interesse para ser aqui discutido. 

Para quem não conhece a história, no momento em que Joana Carda faz, com a vara de negrilho, um risco no chão, toda a Península Ibérica, qual jangada de pedra, se separa do resto da Europa e começa a navegar pelo Oceano Atlântico em direção a África. Perguntam vocês, como eu perguntei na altura que lia o livro, qual a relação que existia entre o risco no chão e a separação geográfica. Aparentemente nenhuma. Só mais tarde, com o desenrolar da história, se percebe por que razão aquela causa provocou aquele efeito. O que é certo é que provocou e, logo ali, percebemos que afinal há riscos e riscos. Há uns que não deixam de o ser, nem almejam a significar mais, mas outros há que têm a capacidade de alterar toda uma realidade. O risco de Joana Carda, por um lado, foi capaz de abrir uma grande brecha no continente europeu, os riscos de Saramago, por outro lado, continuam incessantemente e infinitamente a abrir brechas, construir ligações e criar novas relações, mesmo depois do seu autor já não estar presente. 

Como não quero cair em divagação exagerada, sob pena de ser abandonado a meio da leitura por vós, vou direto ao assunto. O que Saramago nos quis dizer com esta obra, com a ação de Joana Carda e de outras personagens ao logo do romance, é que os riscos que fazemos, a escrita que produzimos é incomensuravelmente poderosa. Ao longo da história, os saberes que vão sendo alcançados, são acumulados através da escrita, mas mais que isso, o conhecimento que é produzido, ou até os novos mundos saídos da nossa imaginação e que nos inspiram, nos ensinam e nos fazem querer ser melhores a cada dia que passa são resultados dos riscos e rabiscos que alguns seres extremamente criativos, como Saramago, foram fazendo. E, por isso, ele achou tão importante passar esta mensagem. O que escrevemos é incrivelmente poderoso, talvez não transforme dois países numa jangada, mas poderá ser capaz de mudar a maneira de pensar de alguém, abrir os seus horizontes e fazê-lo ver para lá daquilo que ele julgara ser possível.

É essa a beleza da produção escrita e que, nesta obra, Saramago tão poeticamente representou como um risco de uma vara de negrilho. Penso nesta metáfora de cada vez que escrevo alguma coisa. Não almejando separar nenhum continente, nem alcançar nenhum objetivo em particular, apenas pretendo que, cada texto que escrevo seja um agradecimento, primeiro a quem me deu a capacidade para eu a poder aproveitar e depois a todos os outros produtores de riscos que me permitiram sonhar e descobrir novas realidades através dos seus escritos.

Como definir prioridades, em pleno século XXI

17.01.17 | António Mota

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Vivemos numa sociedade que consome avidamente os nossos dias, sem que nós tenhamos consciência disso. Recebemos solicitações de todos os lados e de várias dimensões. O telemóvel não para de tocar com notificações relacionadas com a vida de todos os que nos rodeiam, a televisão tenta incessantemente apoderar-se da nossa atenção para mais um noticiário dramático e a internet chama por nós, com os sites e blogs a precisarem que os olhemos e partilhemos para que possam sobreviver. No topo disto tudo, temos a nossa vida: família e, claro está, trabalho. Ora, é por de mais sabido que, a este respeito, vivemos numa verdadeira sociedade meritocrata e adepta da excelência. De acordo com os discursos motivadores e pseudo-inspiradores dos nossos patrões, líderes ou governantes, a cada dia temos de nos conseguir exceder. Há que produzir mais e melhor, temos de provar quotidianamente que conseguimos ultrapassar o nosso colega do lado, pois só assim seremos reconhecidos, só desta forma subiremos na vida e melhoraremos as nossas condições. Pois bem, eu, com a minha costela diletante de um verdadeiro Carlos da Maia acabadinho de sair da obra mor de Eça, acho tudo isto um grandessíssimo saco cheio de nada, aquele tipo de palavreado que não encontra simpatia em mim. 

Desde novo que considero possuir algumas boas virtudes e alguns bons defeitos (sim, os defeitos também servem para alguma coisa boa). Nem mais, nem menos que as outras pessoas, apenas aqueles que definem a minha personalidade e que, no seu conjunto, me fazem ser quem eu sou. Também desde muito cedo percebi que, como toda e qualquer outra criatura, sou limitado e as minhas capacidades são finitas. Assim, ainda durante a minha juventude concluí que tinha de tomar uma decisão, sabendo que essa decisão definiria, de certa forma, a minha vida futura. Como não me considerava um génio ou um predestinado, sabia que para ser excelente em algum domínio da minha vida, teria de quase abdicar dos outros. Por outras palavras, para ser o melhor profissional, teria de me contentar em ser um amigo de ocasião, um filho desinteressado e um marido e pai ausente, além de que me sentiria, enquanto ser humano, incompleto. A excelência tinha um preço e eu não estava disposto a ficar à espera de um desconto. Então, no pleno da maturidade dos meus 16 anos, decidi que, se eu possuísse cinco candeeiros para acender e uma quantidade limitada de energia, eu não iria utilizá-la num só candeeiro que ofuscasse todos os outros, mas sim, reparti-la-ia pelos cinco, ainda que, desse modo, a luz não brilhasse de maneira tão intensa. 

Quinze anos depois, sou um profissional razoável com consciência de que poderia ser melhor, um amigo que está presente na vida dos meus amigos e um marido que, apesar de ainda estar a aprender o que isso é, tenta fazer a sua esposa feliz. Além disso, o meu sofá nunca se queixará de solidão, pois não há um dia que não lhe faça companhia durante um bom período.

Sei que o poeta diz "Para seres grande, sê inteiro", no entanto, nesta sociedade que pede tanto de nós afirmo que temos de sabiamente escolher as nossas prioridades e escolher quais as aplicações da minha vida devo desinstalar ou, pelo menos, pôr em stand-by. Por isso, digo abertamente que não há excelência na minha vida, não há perfeição em nenhuma das suas dimensões, tento, sim, que haja equilíbrio, realização pessoal e felicidade. Para mim e para os que me rodeiam.  

Amor, um verdadeiro Hallelujah?

16.01.17 | António Mota

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Não há nada como começar a semana a escrever sobre uma das minhas músicas preferidas. Uma das mais ricas, simbólicas e autênticas que alguma vez foram compostas. Falo de Hallelujah composta por Leonard Cohen e, posteriormente, adaptada por Jeff Buckley. Na minha opinião, esta é uma das mais sinceras definições de amor que já alguma vez ouvi e que vem na linha do que tem vindo a ser aqui discutido em alguns dos meus últimos textos.

 

 

 

A mensagem da música é clara. Recorrendo a duas histórias bíblicas, o compositor revela a sua opinião acerca do que é o amor, ou por outras palavras, em que consiste viver o amor. Em primeiro lugar, há uma referência à história do Rei David. O assassino de Golias apaixona-se por Betsabeia, esposa de um dos seus soldados. David apressa-se a enviar esse mesmo soldado para a frente da batalha, de modo a que morra e ele possa desposar a sua mulher. Como seria de esperar, a história não acaba bem para o lado do Rei David. De seguida, é-nos referida a história de Sansão e Dalila. Como se sabe, Sansão apaixona-se por Dalila que o acaba por trair, depois de descobrir que a fonte do seu poder é o seu cabelo comprido. Assim, ela convence-o a cortar o cabelo (ou ela própria o corta, segundo algumas fontes) e este fica sem os poderes. Partindo destas duas histórias e das suas metáforas, o compositor afirma muito abertamente: "Love is not a victory march/ It's a cold and it's a broken Hallelujah". E é aqui que, na minha opinião, está o núcleo e a beleza da mensagem. Este verso deveria ser, para mim, o ponto de partida para qualquer reflexão sobre as relações amorosas. Todos sabemos que Hallelujah significa a exaltação de algo bom, uma demonstração de contentamento. Ora, e existirá algo, nas nossas vidas, mais valioso que o amor? Ainda assim, o amor não é uma marcha vitoriosa, não é um mar de rosas como se costuma dizer. Há obstáculos, há percalços, há sofrimento, mas é amor e, por isso, é também alegria. Numa tradução tosca, quase literal, o amor é um aleluia frio e sofrido, é júbilo, é contentamento, mas é também dor e sofrimento. Seria muito melhor se tudo fosse perfeito, se tudo corresse bem, mas concordemos que, se assim fosse, não teria a mesma beleza, nem lhe atribuiríamos o mesmo valor.

 

 

 

Deixo-vos com a música, referindo apenas que, enquanto houver seres capazes de produzir obras com esta beleza, nós nunca seremos capazes de deixar de amar.

 

 

A amizade segundo Oscar Wilde

15.01.17 | António Mota

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Prezo muito a amizade e, por isso, este texto é, para mim, uma verdadeira doutrina.

 

Loucos e Santos

 

“Escolho os meus amigos, não pela cor da pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila dos olhos.
Tem que ter um brilho questionador e uma tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espíritos, nem os maus de hábitos.
Fico com os que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero respostas, quero o meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim.
Para isto, só sendo louco.
Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho os meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só ombros e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim, metade maluquice, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, que e lutem para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças para que não esqueçam o valor do vento no nosso rosto; e velhos para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem sou.
Pois vendo os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos nunca me esquecerei de que a ‘normalidade’ é uma ilusão imbecil e estéril…”

 

Fica a recitação do texto original para que sintam a mensagem de forma mais autêntica.

 

 

 

 

 

O Vendedor de Passados

13.01.17 | António Mota

Hoje, decido-me a partilhar convosco a história de um livro cuja mensagem me cativou pela sua originalidade e pela forma que, quase a brincar, aborda assuntos tão sérios e merecedores de reflexão.

 

Em O Vendedor de Passados, o narrador Eulálio, uma osga, conta-nos a história de Félix Ventura, um albino, filho adoptivo de um alfarrabista. Influenciado pela profissão do seu pai, Félix tornou-se um ávido leitor e, posteriormente, um vendedor de livros em segunda mão. No entanto, a sua ocupação principal passa a ser traficar ficções, ou melhor, passados, pois passa a ganhar a vida a vender genealogias às pessoas, inventando histórias para elas. Se alguém sente que precisasse de um passado que lhe facilitasse o presente, Félix Ventura era a pessoa a procurar. “Os empresários, os ministros gostariam de ter como tias aquelas senhoras, prosseguiu, apontando os retratos nas paredes – velhas donas de panos, legítimas bessanganas -, gostariam de ter um avô com o porte ilustre de um Machado de Assis, de um Cruz e Sousa e ele vende-lhes esse sonho singelo.” (Agualusa, 2005). A sua vida muda de rumo, no entanto, quando ele, ironicamente, é procurado por um estrangeiro que quer comprar uma identidade angolana. Não um angolano que procura um passado que o ligue a um país estrangeiro, mas exactamente o oposto. Este estrangeiro torna-se José Buchmann, nascido na Chibia, uma área no sul de Angola que tinha sido ocupada por europeus, com descendência madeirense. Mais tarde, fica-se a saber que o seu nome verdadeiro era Pedro Gouveia, um português que viveu desde muito novo em Angola, mas que tinha saído do país, rumo a Portugal, por motivos algo obscuros. Pedro Gouveia, mais tarde José Buchmann, regressa mais tarde a Angola com o objectivo de vingar a morte da sua amada e a tortura da sua filha, com quem se reúne durante o decorrer da história. A parte mais interessante, significativa e simbólica do livro chega mais tarde, quando esta personagem começa a apropriar-se do passado que Félix lhe vende. A tal ponto que começa a tentar confirmar esse passado inventado com factos reais. Por outras palavras, ele corrobora a ficção, chegando, inclusivamente, a construir e a fotografar o túmulo do seu avô na Chibia e chega a viajar até Nova Iorque com o objectivo de encontrar algo que provasse a existência da sua mãe ficcionada. De certa forma, pode-se afirmar que ele foi inventado, numa primeira fase, mas, mais tarde, começou a inventar-se, começou a vestir a ficção com roupas de verdade. Esta metamorfose de Gouveia que se torna Buchman completa-se no final da história, quando este se muda definitivamente para a Chibia.

Quando li esta obra, conclui que não era propriamente a atividade de Félix que me perturbava, não eram as mentiras que ele conscientemente vendia. O que mais me interessou era a possibilidade, como no caso de Buchmann, de as mentiras se transformarem em verdades. No fundo, a personagem que o autor estava a construir, ganhou liberdade e começou a construir-se a ela própria, como que se tivesse ganho vida. O que, por si só, nos traz a ideia da indefinição existente entre as fronteiras da realidade e da ficção, do autor e da personagem, do criador e do criado. Na verdade, se transpusermos a história de José Buchmann para um sentido mais lato, facilmente entendemos que as memórias que se conjugam na construção de uma História (aquela que nos ensinam na escola e em que nós acreditamos tão inocentemente sem a questionar), muitas vezes, não são mais que muitas estórias acrescentadas, fruto da nossa memória subjectiva das experiências vividas. Facilmente se percebe, então, que Agualusa, com esta obra, tenta trazer esta perspectiva para o domínio da identidade angolana, tentando-a desconstruir. Na sua opinião, a própria história do seu país é construída à base de muitas estórias. A melhor forma que Agualusa encontra para abordar essa questão é, ele próprio, problematizar o conceito de passado, remexer com as nossas memórias, questionar as próprias fronteiras de realidade e fantasia, história e ficção.

 

Recomendo.

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Pó de arroz

12.01.17 | António Mota

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Há músicas que tentam passar mensagens complexas, tentam esconder verdades obscuras ou até os segredos mais íntimos dos seus compositores. Outras há que nos desarmam de tão simples, sinceras e espontâneas que são. Há um grupo restrito de compositores que conseguem dizer tanto com pouco, e de uma forma tão descomplicada, que nos deixam sem palavras. A inocência e a naturalidade desta música fazem-me arrepiar de cada vez que a ouço. Em poucas palavras, Carlos Paião, aqui interpretado por Tiago Bettencourt, descreve de forma incrivelmente certeira uma parte fundamental dos relacionamentos humanos, a atração.

 

 

 

O fim do romantismo

11.01.17 | António Mota

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Quando se fala cada vez mais de relações frágeis, divórcios e casamentos que morrem quase à nascença, dou comigo a pensar na ousada teoria que Allain de Botton defende. Segundo ele, o grande culpado de as pessoas desatarem a divorciar-se e a terminar uma relação quando surge o primeiro obstáculo é, vá-se lá imaginar, o Romantismo. O filósofo suíço refere-se ao movimento estético e literário que vigorou na Europa durante o século XIX. Esta corrente é caraterizada por uma busca incessante pela perfeição, uma procura doentia pelo inatingível. Não é por acaso que mitos como o de Prometeu e de Ícaro renascem nesta altura. É precisamente por estes representarem um confronto com o estabelecido, de modo a ser atingida uma nova realidade, nunca antes vivenciada, que estas estórias foram resgatadas pelos românticos e por eles defendidas como autênticas doutrinas dogmáticas. Como seria de esperar, e porque o ideal só existe porque nunca foi atingido, nenhum desses românticos resgatou para si essa tão procurada perfeição. Espalhou-se, então, por entre eles o chamado spleen, uma profunda melancolia e um tédio existencial por a realidade não ter ido de encontro ao que eles procuravam. Allain de Botton diz que este tipo de mentalidade se arrastou, de certa forma, até aos dias de hoje, principalmente no que diz respeito às relações humanas. Segundo ele, todos nós, de uma maneira ou de outra, ainda acreditamos na mulher-anjo de Petrarca ou no príncipe encantado dos contos de fadas. Acreditamos que o vamos encontrar, casar com ele e vivermos felizes para sempre. Mesmo quando, antes de se partir para oficialização da relação, as pessoas passam anos a fio juntas, parece que não se conhecem verdadeiramente, filtrando aquilo que vêem e vendo apenas aquilo que querem ver. Por receio, vergonha ou embaraço, não se discutem defeitos e loucuras. Fazemos de conta que não existem ou acreditamos profundamente, caso estejamos conscientes delas, que com o tempo acabarão por desaparecer. Inevitavelmente, quando passamos a partilhar o mesmo espaço para viver e a vermo-nos obrigados a partilhar cama, sofá e televisão a realidade muda. Eventualmente acabamos por dar de caras com os defeitos um do outro e não há como fingir que eles não existem. Surgem, então, os problemas, e a porca acaba por torcer o rabo. Assim, Allain de Botton diz que, se as pessoas deixarem de ser tão românticas e passarem a ser mais pragmáticas, muitas destas desilusões serão evitadas. Se passarmos a falar abertamente sobre o nosso lado mais sombrio, sobre as caraterísticas que tão afincadamente tentamos esconder, as surpresas desagradáveis vão obrigatoriamente diminuir. O filósofo suíço vai mais longe e diz que, se fosse ele a governar o mundo, instituiria um tema obrigatório para falarmos ao jantar com a nossa família. Depois de falarmos sobre o nosso dia e antes de darmos a opinião acerca das últimas notícias, haveríamos de falar dos nossos desvarios, diariamente, como se de um rito se tratasse. Dessa forma, tornar-se-ia comum abordarmos os nossos defeitos, incluindo aqueles que, ainda que inocentemente, não queremos que sejam descobertos durante toda a nossa existência. Simultaneamente, evitamos ilusões desnecessárias e desilusões futuras. 

 

Ainda que não concorde totalmente, reconheço a validade do raciocínio e, face ao que vemos acontecer à nossa volta, faz sentido alguém chegar a este tipo de conclusões. Não devemos abandonar definitivamente as nossas ilusões e sonhos, ainda assim devemos ser pragmaticamente conscientes que não há seres, relações ou uniões perfeitas e imutáveis. Existem sim, pessoas que amamos acima de todo e qualquer defeito, para lá da maior das imperfeições e que estaremos dispostos, assim como esperamos que essas pessoas estejam, a compreender, a ultrapassar e a amar também essas maluqueiras.

O Estilo

10.01.17 | António Mota

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“Não aguentamos a desordem estuporada da vida”

Um dos meus grandes defeitos que, dependendo do ponto de vista, pode também simultaneamente ser considerado uma das minhas grandes virtudes, é o de carecer, desde que me conheço, de atribuir um sentido e uma significância a tudo o que faço, em todas as dimensões da minha vida. Dita desta forma, a ideia que acabo de referir apresenta-se como algo vago e pouco expressivo, mas se a desenvolver, penso que esta não é muito difícil de perceber. Desde sempre senti uma necessidade absurda de atribuir ordem e linearidade às coisas. Bem sei que um espírito afecto às letras e às contendas do espírito não deve ser devoto às ideias ordenadas, fixas, lineares e harmoniosas. Tem antes de se sentir preparado para pôr constantemente tudo em causa e re-questionar cada partícula da sua doutrina ou do seu credo, como lhe quisermos chamar. Apesar de estar consciente desse facto, que é um verdadeiro axioma, na vida de qualquer ser pensante, em geral, e de qualquer consciência dedicada às filosofias em particular, nunca me senti capaz de actuar na desordem e no caos. Sempre necessitei de ter as ideias bem organizadas, como que colocadas em diferentes compartimentos, relacionadas com as várias extensões da minha vida e de acordo com os meus diversos objectivos e propósitos. Para mim, tudo que acontecesse deveria possuir uma causa e um efeito. Assim, passei grande parte da minha vida tentando e atribuindo causas e efeitos, percebendo as suas inter e intrarelações.
Pois bem, hoje que conheço um pouco mais do mundo das pessoas, das suas vivências e das suas semânticas, ou melhor, da falta delas, percebo clara e inequivocamente que esta é uma das grandes razões para os meus sempre presentes sentimentos de desespero e insatisfação pessoais. Quanto mais apegados formos à harmonia, quanto mais aficionados nos declararmos à linearidade da vida, mais dificuldades vamos ter para nos mentalizarmos da sua “desordem estuporada”. Pelos infinitos esforços que têm vindo a ser feitos ao longo de todos os séculos da nossa história, por vezes, por meio de muitas estórias, facilmente percebemos que não há vida que perceba a vida, não há ordem que lhe resista, nem espírito que lhe consiga dar razão. Pelo que já referi, poucos devem ser os seres pensantes que ainda não tenham chegado a esta conclusão. Não é descoberta nenhuma. No entanto, e talvez venha daí a minha admiração por este tema que, como se pode ver, é há bastante tempo alvo das minhas mais acesas reflexões, nunca desistimos nem jamais iremos abandonar esta luta de atribuir sentido ao que já por de mais se provou não possuir nenhum. Quase que almejamos significar aquilo que por definição é insignificante.
Tal como acontece com todas as outras reflexões que trago sempre comigo, com as quais passo imenso do meu imenso tempo de solidão, e que precisam de uma razão que motive a sua expressão, o que acirrou toda esta corrente de pensamentos, foi a leitura de uma prosa que, segundo o seu autor é poesia, e que me fez assumir e definitivamente aceitar estas ideias que corriam em mim, mas que devido a alguma ainda inocente esperança de descrédito não haviam sido exteriorizadas. Falo de um pequeno texto de Herberto Helder, Estilo. Aquando da sua leitura, experienciei um sem número de ideias partilhadas e consciencializei outras tantas que me permitiram uma melhor percepção e um mais claro entendimento das que já possuía. Primeiramente, é reconfortante saber que questões que nos são tão íntimas e com nuances tão pessoais foram também alvo de reflexão de mentes tão ilustres. Depois, há que perceber inequivocamente duas realidades que para mim são dois verdadeiros aforismos. Por um lado, existe, de facto, essa noção que a nossa vida é terrivelmente desordenada e com desígnios incompreensíveis, mas que, e por outro lado, nós nunca vamos deixar de lhe tentar dar sentido, nem desistir de procurar dar ordem, harmonia e linearidade às nossas acções. Agora resta saber como o fazemos. É aí que, segundo Herberto Helder, surge o Estilo. Podemos perguntar de que Estilo estamos a falar. Será o estilo de escrever, o estilo de falar, o estilo de rir, o estilo de falar. Eu mesmo fiz essa pergunta a durante a leitura. Agora que consigo pensar de forma mais independentemente, depois de ter assimilado as ideias gerais do texto, admito que o estilo se trata de todas elas em geral e de nenhuma delas em particular. No fundo, podemos resumir todas essas ideias numa que as abarca. Assumamos, então, que estamos aqui a falar do estilo de viver. E o nosso estilo de viver, ou estilo de vida, se preferirmos um tema bem mais comum e mais fácil de perceber, é a forma como falamos, rimos, comemos, escrevemos, vestimos, a forma que encontramos para sermos coerentes, perceba-se, coerentemente fortes em face das incoerências da vida. No que diz respeito a este tema em particular, sei bem do que estou a falar, uma vez que, como já tive oportunidade de referir, sempre fui dependente das coerências e mesmo aceitando que é bem mais importante ser consequente do que ser coerente, nunca conseguirei viver de forma incoerente, mesmo entendendo que isso me possa tornar num inconsequente. Pois bem, como o próprio Herberto o coloca, “O estilo é o modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação.” Ele, por exemplo, arranjou o seu estilo “…estudando matemática e ouvindo um pouco de música – João Sebastião Bach.”
Há, por exemplo, quem recorra à arte para definir o seu estilo. E, se pararmos um pouco para reflectir sobre a sua definição, percebemos que faz todo o sentido considerar a arte uma tentativa de transformar o mundo que é de todos, no nosso mundo. Tomemos o exemplo de um poeta. Ao escrever poesia, ele não faz mais que organizar os seus sentimentos, percepções e entendimentos versos, que se agrupam em estrofes e que podem ou não ter que obedecer a um sem número de regras a nível vocabular, da rima e da métrica. Desta forma, ele está a forçar a sua intuição e a desordem dos seus sentidos a procurarem uma harmonia de forma a obter a expressão. Neste processo, e com ele, o poeta define o seu estilo e arranja um utensílio que o ajuda a viver.
Por tudo o que foi dito até aqui, esta parece um enigma bastante fácil de resolver. Arranja-se um estilo e vive-se. A meu ver, temos, no entanto, que estar conscientes da natureza, do propósito e principalmente do fatalismo deste elemento a que chamamos estilo. De forma muito simplista, a nossa equação resume-se a isto: Viver é demasiado, não conseguimos dar lógica aos nossos actos, nem conseguimos sequer perceber as suas consequências. Então arranjamos um estilo que vai ser a ferramenta da nossa salvação. Contudo, quando aceitamos essa realidade inultrapassável e partimos para a descoberta do nosso estilo, assumimos de forma irremediável que a nossa vida é insignificante por natureza e que com o estilo estaremos apenas a contornar o problema e não a resolvê-lo. Assim, nunca viveremos, apenas sobreviveremos, pois o estilo é o nosso tudo, pois dá-nos alguma ordem, mas é também a confirmação evidente do nada que somos. Só partimos para a resolução parcial desta equação, quando estivermos plenamente conscientes da sua impossibilidade. Daí podermos dizer que o estilo é a nossa fuga e o nosso cárcere, a salvação e o desespero da nossa limitação. Daí a nossa loucura. “Mas, escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa… Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande segredo da nossa humanidade?”